sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Cada vez pior

Antes o terremoto, depois o furacão e a tempestade tropical, agora o surto de cólera. As catástrofes no Haiti parecem não ter fim. Mas, por mais que as catástrofes tenham suas parcelas de culpa, há algo que tem passado despercebido naquele país e que eu já comentei aqui em posts anteriores: a dita ajuda ao país.
Houve mobilização mundial para ajudar o país, a MINUSTAH já está lá a um bom tempo, mas o que se lê são só notícias sobre tragédias que ocorrem naquele país e sobre a condição deplorável que sua população enfrenta. As ditas ajudas parecem não surtirem um pingo de efeito, enquanto a população fica cada vez numa situação pior, sendo protagonista de uma tragédia sem fim que parece interessar e muito aqueles que dizem ajudar o país.
Enquanto essa situação não se resolve e as ajudas não se fazem de maneira eficaz e estrutural, o país bem como sua população continuarão a própria sorte que ultimamente parece que os abandonou.


“Precisamos absolutamente deste dinheiro o mais rápido possível para evitar que sejamos superados por esta epidemia. Todos os esforços de combate à doença podem se tornar inúteis a menos que a verba seja angariada”. Este apelo categórico foi pronunciado na última sexta-feira, 12 de novembro, por Elisabeth Byrs, porta-voz do Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários da Organização das Nações Unidas [ONU]. A quantia a que se refere Byrs é o montante de R$ 163,9 milhões de dólares que, segundo a ONU, seria necessária para controlar a epidemia de cólera que se propaga no Haiti desde meados de outubro e que matou até momento mais de 900 pessoas, além de infectar outras 14 mil.
As palavras de Byrs se somam a recente declaração do Departamento de Saúde da Flórida, estado estadunidense que possui mais de 240 mil migrantes de origem haitiana.  A preocupação das autoridades sanitárias é com a possibilidade da epidemia se alastrar para outros países vizinhos, inclusive os EUA. Segundo a página oficial na internet do Departamento “a cólera não se espalha tão facilmente em países desenvolvidos como os EUA, mas queremos assegurar que não deixaremos situações de alto risco passarem despercebidas, como o cólera em alguém que manipule alimentos, ou focos isolados”.
Controlar a epidemia e evitar a propagação da doença para fora das fronteiras haitianas é a preocupação atual da ONU e das ONGs estrangeiras presentes na ilha. De fato, essa parece ser a tônica da atuação da comunidade internacional no país: combater as conseqüências das tragédias e fechar os olhos para suas causas.

Cólera
Cólera é uma infecção intestinal aguda causada por uma bactéria chamada Vibrio Cholerae que se transmite pela ingestão de água ou alimentos contaminados principalmente por fezes de pessoas infectadas. Apesar de alcançar proporções epidêmicas em regiões empobrecidas da África e Ásia, até o início de outubro passado nenhum caso de cólera havia sido registrado em território haitiano, segundo informações de Claire-Lise Chaignat, chefe do grupo de controle global da cólera da Organização Mundial de Saúde.
Não há ainda um consenso a respeito da origem da epidemia, que se tornou evidente a partir do dia 20 de outubro quando dezenas de pacientes começaram a morrer com febre alta e diarréia num hospital da cidade de Saint Marc, departamento de Lartibonite. A principal suspeita dos especialistas é de que a enfermidade tenha vindo do estrangeiro e se difundido pelo país através da contaminação do Rio Lartibonite.
A MINUSTAH [Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti] destacou em comunicado oficial “a dificuldade, inclusive a impossibilidade” de saber como a cólera chegou ao país, visto que foi comprovado que o microorganismo que causou a epidemia é igual ao encontrado na Ásia meridional. No entanto, entre a população haitiana as suspeitas recaem justamente sobre os soldados da própria MINUSTAH, especificamente um batalhão oriundo do Nepal, país asiático onde a cólera é endêmica. Localizado no município de Mirebalais, a poucos quilômetros de Saint Marc e às margens do Rio Lartibonite, o atual contingente de soldados nepaleses chegou ao Haiti nos primeiros dias de outubro, depois de um novo surto de cólera ter atingido seu país de origem.
Edmonde Suplice Beauzile, senadora do departamento haitiano de Plateau Central, solicitou uma investigação sobre a responsabilidade da MINUSTAH na propagação da epidemia. Para Beauzile, os soldados nepaleses “contaminaram o rio, causando a morte de muitas pessoas. Pedimos à MINUSTAH que solicite a um organismo independente a abertura de uma investigação”.
Confirmada essa hipótese, a MINUSTAH verá sua função de estabilização do Haiti novamente comprometida, justamente quando seu mandato foi renovado por mais um ano durante a última reunião do Conselho de Segurança da ONU ocorrida em 15 de outubro. Ocupando o território haitiano desde 2004, quando foi criada sob o pretexto de que o Haiti representava “uma ameaça à paz e segurança da região”, sendo necessário portanto o envio de uma força militar de ocupação para conter as mobilizações populares depois da derrubada violenta do então presidente Jean Bertrand Aristide, a MINUSTAH passa hoje por uma de suas maiores crises de legitimidade. Durante os últimos seis anos, foram recorrentes as denúncias de tortura, estupro e assassinato. Além disso, passados dez meses desde o terremoto que abalou o país em 12 de Janeiro de 2010, as tropas da ONU ainda não foram capazes de dar uma resposta eficaz às vitimas do terremoto. Ruínas e acampamentos improvisados tomam as ruas da capital Porto Príncipe, mas não se vê nenhuma movimentação por parte das tropas militares para a retirada dos escombros e início da reconstrução de prédios e edifícios. E por fim, a cólera.

Furacão
Com a aceleração da epidemia nos últimos dias, a previsão é de que “um total de até 200 mil pessoas deverão ter os sintomas da cólera, indo dos casos de leve diarréia até a desidratação mais grave”, informou a porta-voz da ONU, Elizabeth Byrs, que completa: “Espera-se que os casos surjam numa explosão de epidemias que ocorrerão subitamente em diferentes partes do país”.
Na cidade de Gonaives foram registradas ao menos 60 mortes por cólera e na capital Porto Príncipe, onde mais de um milhão de desabrigados do terremoto vive em acampamentos sem as condições mínimas de saneamento, 27 óbitos foram causados pela epidemia.  “Porto Príncipe é uma imensa favela onde as condições são muito ruins em relação às instalações sanitárias e de água. São as condições perfeitas para uma propagação rápida da cólera”, afirmou Jon K. Andrus, subdiretor da Organização Pan-Americana de Saúde (OPS).
Para agravar ainda mais a situação, no dia 05 de novembro o Furacão Tomas alcançou o território haitiano, afetando principalmente as regiões noroeste e sul do país, deixando ao menos 21 mortos e cerca de 6.000 famílias desabrigadas.
As chuvas e inundações causaram deslizamento de terra, bloqueando diversas estradas e inundando o rio Lartibonite, suspeito de ser o principal foco da epidemia de cólera. Os relatos são de que os estragos nas áreas agrícolas foram enormes gerando perdas que podem chegar a 70% dos cultivos como banana, milho e feijão que formam a base da alimentação local. De acordo com o historiador José Luis Patrola, que coordena a Brigada Dessalines de cooperação entre a Via Campesina Brasil e as organizações camponesas do Haiti, “os problemas causados pelo furacão terão maior efeito nos próximos dois meses onde a falta de comida atingirá outra vez os camponeses pobres dessas duas regiões consideradas as mais isoladas e abandonadas do país”.
Este não é o primeiro furacão a assolar o território haitiano. Entre os meses de setembro e outubro de 2008, a passagem do furacão Gustav e da tempestade tropical Hanna deixou mais de 500 mortos e milhares de desabrigados. Patrola ressalta que “cada ciclone ou furacão que costuma atingir a região do Caribe nessa temporada tem maior impacto sobre o Haiti que vive um grave problema de desmatamento acompanhado de técnicas agrícolas predatórias ao meio ambiente que levarão a um caos generalizado caso o problema não se resolva de maneira sólida e estrutural”. O desmatamento no Haiti já destruiu mais de 95% das matas originais e a principal fonte de energia do país – utilizada por mais de dois terços da população – ainda é o carvão vegetal.

Lucro
“Foi preciso mais uma catástrofe para evidenciar o problema e fazer com que o Estado e a ‘comunidade internacional’ abrissem os olhos para tamanha vulnerabilidade da população pobre. Esta epidemia deveria envergonhar aqueles que ‘ajudam’ o Haiti há muitos anos e mesmo assim mais de 90% dos camponeses consomem água suja”, denuncia José Luis Patrola.
De fato, a atual epidemia de cólera, os estragos do furacão Tomas e as milhares de mortes causadas pelo terremoto de 12 de Janeiro são conseqüências dos graves problemas estruturais que levam a maioria da população haitiana a uma vulnerabilidade permanente. O Haiti é hoje a nação mais pobre do continente americano, com 56% da população abaixo da linha da pobreza e com uma expectativa de vida de 58,1 anos. No Haiti, a miséria já existia antes de qualquer terremoto, furacão ou cólera.
Ao não lidar com os problemas estruturais, atuando para amenizar as conseqüências das tragédias ao invés de buscar combater suas causas, o Estado haitiano e a comunidade internacional transformam as catástrofes naturais e a miséria no Haiti numa fonte inesgotável de lucros. Aos 163,9 milhões de dólares demandados pela ONU para combater a atual epidemia de cólera, podemos somar os 126 milhões que a ONG estadunidense USAID está investindo no campo haitiano, os 9,9 bilhões de dólares para a reconstrução do país pós-terremoto prometidos por Bill Clinton e seus doadores, os 3,6 bilhões consumidos para manter as tropas da MINUSTAH no país e os 7,5 milhões de dólares gastos mensalmente somente com o aluguel dos banheiros químicos para os desabrigados em Porto Príncipe.
É essa atitude que explica a situação paradoxal de ser o Haiti o país mais pobre das Américas mesmo sendo o maior destinatário da ajuda internacional no mundo. 60% do PIB haitiano é oriundo de verbas estrangeiras que, assim como os furacões e ciclones, apenas passam pelo território haitiano, mantendo a infra-estrutura e os altos salários dos funcionários da ONU e das milhares de ONGs, sem chegar às mãos da população e sem alterar as condições sócio-econômicas do país.
“O Estado haitiano e a comunidade internacional deverão pensar o Haiti sob outra ótica que não a das permanentes tragédias que aqui ocorrem”, aponta José Luis Patrola, para concluir que: “Ou pensamos a ajuda ao Haiti desde um ponto de vista de resolver problemas estruturais ou viveremos grandes espetáculos midiáticos acompanhados de grande propaganda sobre doações para ajudas emergenciais. Dois ou três anos em seguida as catástrofes retornarão e veremos o mesmo espetáculo da tragédia se repetindo”.

Extraído de cartacapital.com.br

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